Sunday, February 19, 2006

Cantando a gente faz história - "Cazuza: o tempo não pára"

Durante a década de oitenta, o Brasil viveu os momentos finais da ditadura, teve seu primeiro presidente civil em mais de vinte anos, Tancredo Neves, que morreu trinta e sete dias depois de ser eleito e foi substituído por José Sarney, passou pela redemocratização, que se configurou com uma nova constituição promulgada em outubro de 1988 e, pela primeira vez em trinta anos, elegeu um presidente por voto direto.
As novidades e transformações políticas deste período criaram uma pressão ideológica, que exigiu da sociedade uma reavaliação da moral, das certezas e dos limites. Os resquícios da ditadura mantinham-se presentes na forma de medos e referências do poder da censura. Por outro lado, os jovens contribuíam com pretensão e despudor para o amadurecimento da consciência sobre cidadania, até mesmo sobre posturas pessoais diante da vida.
“Cazuza – O tempo não pára” percorre os anos oitenta seguindo os passos do poeta mais exagerado da cultura brasileira. Cazuza era um “pequeno-burguês sem vergonha da zona sul”, que sintetizou no seu comportamento os desejos proibidos e as inquietações de quem, até pouco tempo, era fortemente repreendido por qualquer pensamento mais demorado ou original – que desrespeitasse os alicerces da ditadura.
No amplo círculo social que Cazuza frequenta, se vê a geração do desbunde, que se expressa, erra, enfrenta preconceitos, se depara com fraquezas mas corre desesperada para longe do “museu de grandes novidades”. “Só quem se mostra se encontra, por mais que se perca no caminho” e “obrigar a usar uniforme na rua, cercar a praia com arame farpado, azulejo, uma bosta” são frases do filme que refletem a vontade e os inimigos daquela época.
O Circo Voador, a Pizzaria Guanabara, o Posto 9 – onde se aplaude o pôr do sol - e o Rock in Rio são lugares onde a energia criativa daquela conjuntura, particularmente no Rio de Janeiro, se inflamava, explodia e era disseminada.
No ar, havia o remorso por terem se permitido a restrição do livre-arbítrio durante a ditadura, o que provocou a soberania do egocentrismo e do egoísmo nas relações interpessoais, além de desenvolver a alienação quanto a tudo que se espalhasse pelo passado ou futuro. Se o contexto social, político e econômico não despertavam segurança ou satisfação, a solução encontrada foi a de direcionar o olhar, os interesses e as potencialidades para a brevidade dos acontecimentos, pois assim acreditava-se ser mais fácil conquistar a verdade e a alegria plena.
Não se sabia em que idéia confiar. O berro “Ideologia, eu quero uma pra viver” se fazia ouvir em todas as classes sociais, do volume mais alto ao mais baixo. Após décadas em que as fronteiras da ditadura confortavam as inseguranças para se seguir adiante, a sociedade de repente se percebeu livre – com uma liberdade que dançava ao som do capitalismo, mas era livre – e não tinha experiência suficiente para adequar esta liberdade ao bem estar individual e coletivo. Esta inexperiência e imaturidade eram escancaradas no uso intenso e despreocupado de drogas como o àlcool, a maconha, o êxtase e a cocaína.
De tanto extrapolar os limites pelo simples motivo de provar que fazer isso era possível, aquela geração viu nascer a amargura da AIDS, que chegava para relembrar que nem todas as impotências estavam superadas. O paradoxo (poder da liberdade – impotência) era tão cruel que conseguiu levar aos mais intrínsecos questionamentos a respeito da validade, da utilidade, da razão e do sentido da vida.
O fim, a morte dava as caras. O tempo não parava. Havia ainda muito o que fazer; e nada que pudesse ser feito. O impacto dessa descoberta causou a primeira vitória – talvez triste vitória – do processo de amadurecimento da sociedade. Ninguém afirmava qual seria o caminho mais vantajoso, porém estava claro que as trilhas do exagero e do radicalismo não mantinham o sucesso a longo prazo.
Cazuza possuía um talento: colocar palavras na boca da vida. Nos anos oitenta, a vida, suas necessidades e belezas foram expostas aos mais corriqueiros defeitos sociais. Usando a música como instrumento para comunicar o que afinal devia ser resgatado no naufrágio de ideais, ele ensinou que certezas são eternas durante quase um segundo e que o rock´n roll, assim como a história, “é um rio correndo pro mar; é movimento”.



2 Comments:

Blogger F. Vives said...

Grande texto, menina. E tenho a impressão de que não era exatamente do Cazuza, ou ao menos não só dele que você estava falando.

Thursday, February 23, 2006  
Blogger M.S. said...

Texto longo, confesso que não tenho paciência de ler muito na Internet. Ainda menos em um dia no qual vi pessoalmente a Doutora Havanir Nimitz. Se ela rir, o braço levanta.

Friday, March 03, 2006  

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