Friday, October 20, 2006

O mesmo céu e as mesmas estrelas

É como um pedaço de rua mais quente, um espaço que perturba a minha desantenção e me empurra para os olhos daquele homem. Uma imagem opaca, cinza, marrom, barba sem fazer, sujeira escura sobre uma pele que cobre não se sabe quem. De repente, o cheiro da poluição se perde com a presença de alguém sem banho, sem sabonete, sem perfume de vitrine de loja. Nesse instante, o movimento acelerado da avenida e a pressa desorientada dos trabalhadores se paralisam para perceber. Dar-se conta de que há ruídos nessa ordem de conformismo. Dar-se conta de que existe um homem bastante perto, que não tem casa, que fede, que dorme e acorda sem colchão e vive.

Manhãs que se costuram com singelos “bom dia” e rápidas trocas de olhares. Dos olhos, não fujo porque me vejo humana naquele homem, vejo-me e compadeço-me da nossa idêntica condição. Ele corresponde, sempre com um sorriso. Talvez, melhor que meus pais ou meus amigos, ele consiga desvendar os mistérios do meu pensamento: “Hoje o sorriso tá especial, hein moça”.

A constância dos encontros efêmeros libertam devagar os bastidores de outro humano. Chega a manhã em que o bom dia não é suficiente e o homem vem apertar minha mão, perguntar como estou, qual o meu nome. Eu, surpresa e vencedora – porque conquistei o humano – cumprimento-lhe e devolvo-lhe a pergunta: qual o seu nome? Então a minha vida de colchões, casas, banhos, sabonetes, perfumes, televisões, computadores, academias, estágios, cinemas e restaurantes se mistura com a vida dele de ruas, frio, chuva, pó, chão, calçada, fome, desconforto, exclusão. Chamava-se Cleber, vinha de Manaus. Enquanto eu lhe contava da minha faculdade e do meu trabalho e de onde eu moro e do meu atraso pra primeira aula, ele fez um anel. Pegou um arame, perguntou-me de que cor eu gostava, eu disse verde e ele fez um anel com uma pedra verde. Uma estrela com uma pedra da minha cor favorita. E ele me deu um presente. E ele ia embora pra Manaus.

O humano desconhecido havia me mostrado que as nossas vidas distantes nunca estariam distantes o bastante para não compartilhar o céu e as estrelas.

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