Sunday, September 24, 2006

Sentido

- Mas vamos tentar. Tipo um xadrez: você é as peças brancas. Começa.
- Por que eu sou as peças brancas?
- Tenho vontade de dizer que é porque sou um cara legal. Mas, na verdade, é pq eu me coloquei na posição REAL de peças brancas.
- Você não é um cara legal; peão à direita. Tem um burburinho lá atrás.
- Como assim, burburinho? Nem estamos no mesmo lugar! E que papo é esse de peão à direita? ... Você disse algo? Parece que ouvi uma mosca.

- É uma libélula. E a ventania tá cantando um samba. É sua vez.
- Estamos com um problema aqui. Não apenas ventanias nao cantam - muito menos samba - , como também, pela última vez, isso nao é um jogo.
- Seu chapéu caiu. Ainda é tão cedo.
- Ahn? Do que estávamos falando antes de você começar com a maldita poesia? Era uma coisa importante, diabos!
- As peças brancas.
- Ah, sim. Pois bem. Peças brancas. Exatamente. Ahn... OK: dessas aqui na frente, por favor, aponte aquelas que você considera as tais peças brancas a que se refere.
- Inconseqüente. Aquelas letras de madeira, que você pintou semana passada.
(ar de impaciência) - Vamos por partes: você sabe que isso é um teste, certo? Você entende que isso é um teste? Parece tão difícil assim fazer esse maldito pequeno teste? (suspiro) Querida, todos queremos o melhor pra você. Depois de tudo o que aconteceu semana passada, o médico achou que você deveria responder a esse teste. OK? Então, vamos lá, de novo: por favor, aponte, aí na caixa, quais são as peças brancas a que você tanto se refere....
- Você deixou o pincel sujo e a tinta secou e eu odeio quando isso acontece, porque significa que faltou arte. As peças brancas? Impertinência! Ainda me fala de médicos, e de testes... Tinha aquela foto, PB, a fita que eu gravei do Bach e uma balas de hortelã. Tira da caixa de uma vez. Essa goteira me irrita.

- Olha, Marcela: você concorda comigo que não existe pincel, tinta, foto PB, fita de Bach e nem balas de hortelâ? Entende que o que você chama de goteira é o soro fisiológico que o médico mandou lhe dar?

- Pedro, pare com isso. Por que sempre depois que a gente transa você me olha com esse ar de insensatez e se faz de homem da casa? OK, se não existe fita de Bach, o que estamos ouvindo agora? Você tirou tudo da caixa e pensou que eu não fosse perceber...
- Não. Assim não dá, Má. Meu nome... Qual é o meu nome?
- Continua com essa birra por ter o mesmo nome que o seu pai, Pedro? Pegue pra mim um daqueles chocolates, os com licor, por gentileza.
- Má, estou tentando estabelecer um diálogo aqui. Se a cada pergunta que eu fizer, você responder com outra pergunta, sabe... a coisa não evolui. Isso! Você quer o chocolate? Então me responde: qual é o meu nome? Por favor, Má, você está me assustando...
- Não é novidade que eu o assusto. Quanto ao seu nome... Eu achei que você se chamava Pedro quando o conheci. Quer um? Estão deliciosos.
- Oras, mulher, falei pra não pegar os chocolates. (tapa na cara). Quando eu digo alguma coisa, porra, é pra vc obedecer, caralho!
- Mova logo essa peça! Senão demoraremos décadas até você me pegar com um daqueles seus xeque mates!
- E se chorar leva outro, vadia. (suspiro, eu passo a mão nos olhos). Ok, vamos brincar então.
- De novo, a gente acabou de sair da cama...
- Sim, estamos na cama. Acabamos de transar. Meu nome é Pedro e o seu é... Má? Má? Estou aqui ó... não íamos brincar?

- Marcela é o nome que minha mãe queria que eu tivesse. Mas meu pai me chamou de Lídia. Não me lembre disso... Cuidado, vai derramar o conhaque nos móveis.
- Sim, Lídia, como posso esquecer, he he? É que a gente se conhece a tão pouco tempo...
- Falando em tempo, já se passaram dois dias e não saímos de casa. Pra que vir para o campo se só o que vejo são paredes!? E esses quadros sem cor.
- Ah, os quadros (olho para trás, sua irmã e nosso filho estão nos olhando). É, aquele ali eu nem lembrava mais que existia. Feio, né? Mas o pequeno, sem cor? Lembra quando pintamos ele?
- Você dizia que ia se mudar para Londres e nunca mais nos veríamos. Iria largar tudo por causa de uns diplomas. Todos os quadros são horríveis. Também... Sempre pintamos de ressaca. (ela se levanta e veste a camiseta lilás com tulipas brancas desenhadas)
- Calma, Lídia. Senta mais um pouco. Detesto quando você fica fria assim comigo. Deus do Céu! Não acabamos de fazer sexo?
(uma risadinha constrangida) - Pensei que tinha sido só outra das suas provocações. Por que, então, você nem me beijou depois? (irritada, fecha a porta) E esses bombons nem são tão saborosos assim! (ela coloca um Chopin)

- Não, nós acabamos mesmo de fazer sexo (constrangido de falar isso na frente do filho e da cunhada). Adoro quando você...(nao termino a frase devido ao mesmo constrangimento). Eu te beijei sim, mas foi um beijinho. Me diz, (aponto para caixa). Vamos brincar?
(ela tira a camiseta, se enrola em uma toalha laranja, abre o chuveiro) - Está na hora de levar minha irmã até a rodoviária.
- Lídia? (você não olha) Claro, Má. Pode deixar que depois eu levo. Mas, antes senta aqui. Queria te perguntar algumas coisas.

(ela desarruma o cabelo dele) - O que você acha de dar um relógio de presente de aniversário para o Luca? Sua irmã ligou e disse que a festa será no dia 23. (pega mais dois bombons, coloca a mão no rosto dele, dá um beijo) Adoro fugir da cidade.
(sorrindo, forçosamente) - Rá rá rá... eu também, Má. Mas, então, precisava falar com você, senta aqui um pouco.
(deita na cama e fica olhando para o teto) - Fale, Pedro. (levanta, dá três goles no conhaque, deita de novo)

(não existe conhaque. você está tomando água) - Ahn... desculpa, mas como você me chamou? Pedro? OK, OK... acontece. Diga-me: existe alguma peça branca nessa caixa? (ofereço a caixa pra vc)
- Qual é a dessa vez, hem?
- Nada, ás vezes tenho umas maluquices...pfff, você sabe, né? É que as vezes tenho a impressão que existem peças brancas aqui dentro, que eu tenho que trocar elas de lugar, algo assim. Estava pensando... em que dia estamos mesmo?
- As letras de madeira que você pintou. Sonhei que elas eram mágicas e surgiam aqui dentro de casa de repente. Se aparecesse um F eu via uma flor nova no parapeito da janela, se eu visse um C tinha um caderno novo em cima da cama, eu vi um S e o sonho terminou. Dia primeiro.
- Jurava que já tinham se passado dois dias...
* escrito à quatro mãos.

5 Comments:

Blogger .barile said...

se o kafka transasse com o nelson rodrigues o filho seria esse post.

Monday, September 25, 2006  
Blogger .barile said...

This comment has been removed by a blog administrator.

Monday, September 25, 2006  
Blogger .barile said...

Na verdade, se os dois transassem, mesmo que diariamente por muitos anos, eles não teriam filhos. Contudo, adotariam esse post.

Monday, September 25, 2006  
Blogger .barile said...

ignorando, logicamente, o tempo, a geografia e a preferência sexual deles. ao menos do rodrigues.

Monday, September 25, 2006  
Anonymous Anonymous said...

Já vi esse filme...

Monday, September 25, 2006  

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