Sunday, March 30, 2008

Episódio de decepção

Ela abriu a porta do apartamento por volta das 21h30. Entrou e largou as chaves sobre o balcão do bar, depois de se olhar no espelho ao lado das garrafas de vinho do porto por mais de cinco minutos. O cansaço agia em seu corpo como doses de gim: ele dava intensidade aos pensamentos e sensações e uma moleza que libertava os sentimentos contidos. Uma vontade de chorar invadiu sua garganta.

Sentou-se no sofá de couro branco, sobre a manta de estampa de pele de zebra e segurou o rosto com as mãos. Quando movimentou o olhar, deparou-se com a mesa de centro e sobre o círculo de vidro com cerca de dois centímetros de espessura que era sustentado por uma base de mogno lustrado, havia um pacote cuja origem ela desconhecia.

Observava-o na tentativa de entender como ele poderia ter sido colocado lá, por quem e quando. Não era o dia do seu aniversário, seus amigos não costumavam lhe preparar surpresas desse tipo, não tinha namorado e seus pais estavam muito preocupados com a reforma na casa deles para gastarem tempo com ela.

Começou a desfazer o laço de fita preta que envolvia a caixa quadrada do tamanho de uma melancia coberta por duas folhas de papel de presente azul petróleo. Abriu a caixa e viu um recipiente de vidro ocupado por um líquido cor de ouro. Ao tirar a tampa do pote ela sentiu um forte perfume. O aroma era extremamente agradável e respirá-lo provocava-lhe prazer; um cheiro que lhe lembrava a chuva caindo na areia da praia enquanto as ondas quebravam com força e cuspiam espumas translúcidas.

Mergulhou as duas mãos no líquido cor de ouro e bailava com os dedos enquanto os olhos permaneciam fechados e ela imaginava-se dentro do mar de águas mornas que a protegiam do granizo da tempestade. Não queria sair de lá e por muitos minutos suas mãos bailaram seguindo o ritmo de sua imaginação, que não cessava de lhe causar prazeres. Ela não se sentia sozinha.

De repente suas mãos começaram a arder e então abriu os olhos e o líquido estava agora negro e mais grosso. Atordoada, tirou as mãos do recipiente e notou que elas estavam inchadas. Sentia muita dor e medo. Afinal, não sabia o que era aquilo. Nunca soubera e fora atraída pela cor e pelo aroma que pareciam inofensivos. Mirava os dedos latejando e perguntava-se por que se permitiu tocar uma substância estranha.

Com o joelho direito, lentamente empurrou o pote de vidro em direção à extremidade da mesa de centro até que ele caiu no chão e o líquido negro espalhou-se pelas suas pernas. Ardia-lhe muito a pele que entrara em contato com ele.

Depois de poucos minutos o líquido havia evaporado e no chão estavam só os cacos de vidro. As mãos não estavam mais inchadas nem doíam, mas ela sentia-se traída. Recolheu os estilhaços e os colocou dentro da caixa. Pediria à empregada no dia seguinte que entregasse o pacote ao lixeiro.

Monday, March 24, 2008

Os Ombros Suportam o Mundo

Carlos Drummond de Andrade


Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teu ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.