Wednesday, October 25, 2006

O homem tem fome

Ah, tranquilidade miúda
pra fazer crescer tanta
massa de prosperidade,
que se amasse e
se jogue e se
bata e se molde
e se espere
até ela sair do forno
cheirando felicidade.

O velho, a moça,
o menino, o padre
e a mãe de família
aguardam na fila
pra ganhar um bocado
de fome,
pra poder
levar o dia com
esperança
e água na boca
até degustar
o sabor do
serviço bem feito.

O homem come.
E sua e dorme
e erra e tenta
e muda e consegue
e recria a receita,
substitui o ingrediente
da rotina e comemora.
O homem vence.

No outro dia,
o homem tem
mais fome.

Sunday, October 22, 2006

Desencontro

Perdoa o desencontro.
Perdoa o desassogego
do coração confuso.
Perdoa o método
da doente desconfiança.
Perdoa a paralisia
que amedronta
a vontade.
Perdoa a insensatez
que desvia o futuro.
Perdoa o remorso
de não ter tocado
o teu lábio.
Perdoa o antes.
Perdoa-me.

Saturday, October 21, 2006

Palha Seca


Antes de dormir, imaginava-me deitada sobre o seu peito, acompanhando o ritmo da sua respiração pra pegar no sono. Essa imagem é o meu paraíso. Quando doía o corpo, a mente estava exausta e o coração debilitado, era só montar essa cena com a minha imaginação e um vagalume surgia no breu.

Seu olhar sempre foi como um pêndulo que me sugava, que me encontrava onde nem eu suspeitava estar. Esse amor de urso que precisa do silêncio do inverno, porque é grande, é gigante. Amor sujeito que nos decifra e nos encurrala como obedientes objetos diretos.

As fadas saíram de férias e o nosso caso parece ser o autor dos contos e histórias de final feliz. Somos tão discretos. Enquanto toca a melodia do Tom Jobim, gritamos sem voz as letras do Cazuza. Porque a vida é muito simples. E breve.

Como formiguinha, devagarinho juntamos os gravetos e, no instante em que a memória dissimulava o completo esquecimento, o destino autoritário inventou uma estratégia mágica para cruzar nossas rotas.

Agora eu fico assim: cheia de palavras. Agora eu me lembro de que viver implica sentir sua companhia; e eu já quis não viver. De todos os desperdícios, esse seria o mais constrangedor.

Quase sem querer, vimos um pouco de palha seca. Não há nada melhor pra acender uma fogueira. As estrelas já estavam aborrecidas e ansiosas demais pra ver, lá de cima, um brilho, um estalo de chama, uma reverência à paixão, como uma poderosa fogueira.

E o sono veio. Eu sobre seu peito, sua respiração me aquecendo, a gente como palha seca.

Friday, October 20, 2006

O mesmo céu e as mesmas estrelas

É como um pedaço de rua mais quente, um espaço que perturba a minha desantenção e me empurra para os olhos daquele homem. Uma imagem opaca, cinza, marrom, barba sem fazer, sujeira escura sobre uma pele que cobre não se sabe quem. De repente, o cheiro da poluição se perde com a presença de alguém sem banho, sem sabonete, sem perfume de vitrine de loja. Nesse instante, o movimento acelerado da avenida e a pressa desorientada dos trabalhadores se paralisam para perceber. Dar-se conta de que há ruídos nessa ordem de conformismo. Dar-se conta de que existe um homem bastante perto, que não tem casa, que fede, que dorme e acorda sem colchão e vive.

Manhãs que se costuram com singelos “bom dia” e rápidas trocas de olhares. Dos olhos, não fujo porque me vejo humana naquele homem, vejo-me e compadeço-me da nossa idêntica condição. Ele corresponde, sempre com um sorriso. Talvez, melhor que meus pais ou meus amigos, ele consiga desvendar os mistérios do meu pensamento: “Hoje o sorriso tá especial, hein moça”.

A constância dos encontros efêmeros libertam devagar os bastidores de outro humano. Chega a manhã em que o bom dia não é suficiente e o homem vem apertar minha mão, perguntar como estou, qual o meu nome. Eu, surpresa e vencedora – porque conquistei o humano – cumprimento-lhe e devolvo-lhe a pergunta: qual o seu nome? Então a minha vida de colchões, casas, banhos, sabonetes, perfumes, televisões, computadores, academias, estágios, cinemas e restaurantes se mistura com a vida dele de ruas, frio, chuva, pó, chão, calçada, fome, desconforto, exclusão. Chamava-se Cleber, vinha de Manaus. Enquanto eu lhe contava da minha faculdade e do meu trabalho e de onde eu moro e do meu atraso pra primeira aula, ele fez um anel. Pegou um arame, perguntou-me de que cor eu gostava, eu disse verde e ele fez um anel com uma pedra verde. Uma estrela com uma pedra da minha cor favorita. E ele me deu um presente. E ele ia embora pra Manaus.

O humano desconhecido havia me mostrado que as nossas vidas distantes nunca estariam distantes o bastante para não compartilhar o céu e as estrelas.

Thursday, October 19, 2006

Dentro

Lá dentro estava oco
o pensamento de você.
Perambulando ao redor
ficavam interrupções
mal feitas.

Lá dentro sobrou espaço,
maior que um curativo
pra sua ausência e
uma desengonçada paciência
pra reviver o que
se sabe infinito.

Lá dentro mordia
o desbaratado pecado
de se deixar esquecer
como nuvem cinza
que vai chover.

Lá dentro arranhava
a saudade de
não se sabe o quê,
nem o porquê,
nem de por que
o alguém era você,
lá dentro.

Monday, October 16, 2006

Homenagem ao feriado


A Bela e a Fera
Chico Buarque
Ouve a declaração, oh bela
De um sonhador titã
Um que dá nó em paralela
E almoça rolimã
O homem mais forte do planeta
Tórax de Superman
Tórax de Superman
E coração de poeta
Não brilharia a estrela, oh bela
Sem noite por detrás
Tua beleza de gazela
Sob o meu corpo é mais
Uma centelha num graveto
Queima canaviais
Queima canaviais
Quase que eu fiz um soneto
Mais que na lua ou no cometa
Ou na constelação
O sangue impresso na gazeta
Tem mais inspiração
No bucho do analfabeto
Letras de macarrão
Letras de macarrão
Fazem poema concreto
Oh bela, gera a primavera
Aciona o teu condão
Oh bela, faz da besta fera
Um príncipe cristão
Recebe o teu poeta, oh bela
Abre teu coração
Abre teu coração
Ou eu arrombo a janela

Tuesday, October 10, 2006

Modernidade

- Eu tenho insônia.
- Pega Nana-Nenê no Soulseek.

Wednesday, October 04, 2006

Dublin - by Carmen González









Estado de Espírito

Um pouco de você

Ele me alcançou e por mais que eu fugisse, me contorcesse e tentasse correr, as palavras dele já haviam submergido nos meus pensamentos e mais e mais eu confundia as horas com o início silencioso do inevitável.

Cedo demais, difícil demais, suave demais pra me desprender do medo. Embora longe demais, a proximidade do porvir começou a incomodar. Uma insegurança que já escorregou muito, que excede sempre a dose da vida e agora não quer mais tropeçar nos enganos.

Ele tinha nome, endereço, profissão, tinha CPF, RG, celular. Nada disso eu conhecia. Para todas essas informações me mantinha distraída, porque o resto todo me consumia: as idéias, as gentilezas, as ironias, os habilidosos passos do jogo, ele, ele me consumia como um doce meio amargo, cujo sabor resiste à água, ao tempo, à espera...

Cada vez mais perto, mais presente e eu mais absorvida pela companhia, pelo baile dos cortejos e pela delicadeza tão contundente que entrelaçava nossas palavras.

De repente, o coração ficou mais confortável com uma ansiedade generosa. Aquela tristeza boa de não poder esticar o braço e alcançar o outro, mas ter o outro tão perto quanto o pensamento pode abraçar.


Origens


Um pedaço de conforto no coração de uma louca em reflexão.