- Mas vamos tentar. Tipo um xadrez: você é as peças brancas. Começa.
- Por que eu sou as peças brancas?
- Tenho vontade de dizer que é porque sou um cara legal. Mas, na verdade, é pq eu me coloquei na posição REAL de peças brancas.
- Você não é um cara legal; peão à direita. Tem um burburinho lá atrás.
- Como assim, burburinho? Nem estamos no mesmo lugar! E que papo é esse de peão à direita? ... Você disse algo? Parece que ouvi uma mosca.
- É uma libélula. E a ventania tá cantando um samba. É sua vez.
- Estamos com um problema aqui. Não apenas ventanias nao cantam - muito menos samba - , como também, pela última vez, isso nao é um jogo.
- Seu chapéu caiu. Ainda é tão cedo.
- Ahn? Do que estávamos falando antes de você começar com a maldita poesia? Era uma coisa importante, diabos!
- As peças brancas.
- Ah, sim. Pois bem. Peças brancas. Exatamente. Ahn... OK: dessas aqui na frente, por favor, aponte aquelas que você considera as tais peças brancas a que se refere.
- Inconseqüente. Aquelas letras de madeira, que você pintou semana passada.
(ar de impaciência) - Vamos por partes: você sabe que isso é um teste, certo? Você entende que isso é um teste? Parece tão difícil assim fazer esse maldito pequeno teste? (suspiro) Querida, todos queremos o melhor pra você. Depois de tudo o que aconteceu semana passada, o médico achou que você deveria responder a esse teste. OK? Então, vamos lá, de novo: por favor, aponte, aí na caixa, quais são as peças brancas a que você tanto se refere....
- Você deixou o pincel sujo e a tinta secou e eu odeio quando isso acontece, porque significa que faltou arte. As peças brancas? Impertinência! Ainda me fala de médicos, e de testes... Tinha aquela foto, PB, a fita que eu gravei do Bach e uma balas de hortelã. Tira da caixa de uma vez. Essa goteira me irrita.
- Olha, Marcela: você concorda comigo que não existe pincel, tinta, foto PB, fita de Bach e nem balas de hortelâ? Entende que o que você chama de goteira é o soro fisiológico que o médico mandou lhe dar?
- Pedro, pare com isso. Por que sempre depois que a gente transa você me olha com esse ar de insensatez e se faz de homem da casa? OK, se não existe fita de Bach, o que estamos ouvindo agora? Você tirou tudo da caixa e pensou que eu não fosse perceber...
- Não. Assim não dá, Má. Meu nome... Qual é o meu nome?
- Continua com essa birra por ter o mesmo nome que o seu pai, Pedro? Pegue pra mim um daqueles chocolates, os com licor, por gentileza.
- Má, estou tentando estabelecer um diálogo aqui. Se a cada pergunta que eu fizer, você responder com outra pergunta, sabe... a coisa não evolui. Isso! Você quer o chocolate? Então me responde: qual é o meu nome? Por favor, Má, você está me assustando...
- Não é novidade que eu o assusto. Quanto ao seu nome... Eu achei que você se chamava Pedro quando o conheci. Quer um? Estão deliciosos.
- Oras, mulher, falei pra não pegar os chocolates. (tapa na cara). Quando eu digo alguma coisa, porra, é pra vc obedecer, caralho!
- Mova logo essa peça! Senão demoraremos décadas até você me pegar com um daqueles seus xeque mates!
- E se chorar leva outro, vadia. (suspiro, eu passo a mão nos olhos). Ok, vamos brincar então.
- De novo, a gente acabou de sair da cama...
- Sim, estamos na cama. Acabamos de transar. Meu nome é Pedro e o seu é... Má? Má? Estou aqui ó... não íamos brincar?
- Marcela é o nome que minha mãe queria que eu tivesse. Mas meu pai me chamou de Lídia. Não me lembre disso... Cuidado, vai derramar o conhaque nos móveis.
- Sim, Lídia, como posso esquecer, he he? É que a gente se conhece a tão pouco tempo...
- Falando em tempo, já se passaram dois dias e não saímos de casa. Pra que vir para o campo se só o que vejo são paredes!? E esses quadros sem cor.
- Ah, os quadros (olho para trás, sua irmã e nosso filho estão nos olhando). É, aquele ali eu nem lembrava mais que existia. Feio, né? Mas o pequeno, sem cor? Lembra quando pintamos ele?
- Você dizia que ia se mudar para Londres e nunca mais nos veríamos. Iria largar tudo por causa de uns diplomas. Todos os quadros são horríveis. Também... Sempre pintamos de ressaca. (ela se levanta e veste a camiseta lilás com tulipas brancas desenhadas)
- Calma, Lídia. Senta mais um pouco. Detesto quando você fica fria assim comigo. Deus do Céu! Não acabamos de fazer sexo?
(uma risadinha constrangida) - Pensei que tinha sido só outra das suas provocações. Por que, então, você nem me beijou depois? (irritada, fecha a porta) E esses bombons nem são tão saborosos assim! (ela coloca um Chopin)
- Não, nós acabamos mesmo de fazer sexo (constrangido de falar isso na frente do filho e da cunhada). Adoro quando você...(nao termino a frase devido ao mesmo constrangimento). Eu te beijei sim, mas foi um beijinho. Me diz, (aponto para caixa). Vamos brincar?
(ela tira a camiseta, se enrola em uma toalha laranja, abre o chuveiro) - Está na hora de levar minha irmã até a rodoviária.
- Lídia? (você não olha) Claro, Má. Pode deixar que depois eu levo. Mas, antes senta aqui. Queria te perguntar algumas coisas.
(ela desarruma o cabelo dele) - O que você acha de dar um relógio de presente de aniversário para o Luca? Sua irmã ligou e disse que a festa será no dia 23. (pega mais dois bombons, coloca a mão no rosto dele, dá um beijo) Adoro fugir da cidade.
(sorrindo, forçosamente) - Rá rá rá... eu também, Má. Mas, então, precisava falar com você, senta aqui um pouco.
(deita na cama e fica olhando para o teto) - Fale, Pedro. (levanta, dá três goles no conhaque, deita de novo)
(não existe conhaque. você está tomando água) - Ahn... desculpa, mas como você me chamou? Pedro? OK, OK... acontece. Diga-me: existe alguma peça branca nessa caixa? (ofereço a caixa pra vc)
- Qual é a dessa vez, hem?
- Nada, ás vezes tenho umas maluquices...pfff, você sabe, né? É que as vezes tenho a impressão que existem peças brancas aqui dentro, que eu tenho que trocar elas de lugar, algo assim. Estava pensando... em que dia estamos mesmo?
- As letras de madeira que você pintou. Sonhei que elas eram mágicas e surgiam aqui dentro de casa de repente. Se aparecesse um F eu via uma flor nova no parapeito da janela, se eu visse um C tinha um caderno novo em cima da cama, eu vi um S e o sonho terminou. Dia primeiro.
- Jurava que já tinham se passado dois dias...
* escrito à quatro mãos.